quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Tradução do Texto: Cristianismo e Democracia (John Dewey, 1892)

Cristianismo e Democracia[1]
John Dewey

Tradução: Kevin D. S. Leyser

[...] Jesus não tinha nenhum culto ou rito a impor; nenhuma forma específica de adoração, nenhum ato específico chamado religião [...] Ele proclamou este mesmo tipo de organização de atos especiais e instituições como parte das imperfeições da vida. “A hora chegou em que vocês adoraram ao Pai nem nesta montanha nem em Jerusalém [...] a hora chegou e agora é quando verdadeiro adoradores adorarão ao Pai em espírito e em verdade” [Jo 4] – a hora quando a adoração deveria ser simplesmente a expressão livre e verdadeira do homem em seu agir. Jesus não tinha nenhuma doutrina especial para impor – nenhum conjunto especial de verdades rotulado religioso. “Se qualquer homem quiser fazer a vontade dele, ele conhecerá a respeito da doutrina” [Jo 7.17]. “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”[Jo 8.32]. [...] Não havia nenhuma verdade religiosa que Ele veio ensinar; ao contrário, a sua doutrina era que a Verdade, não importando como fosse nomeada ou compartilhada pelo homem, é uma assim como Deus é um; que apreender a verdade e viver por ela é a religião. Dr. Mulford  em sua Republic of God, mantêm que o Cristianismo não é uma religião, não tendo nenhum culto e nenhum dogma próprio para marcar-lo fora da ação e da verdade em geral. A própria universalidade do Cristianismo o impede de ser uma religião. O Cristianismo, Dr. Mulford sustenta, não é uma religião mas uma revelação.

A condição da revelação é que ela revela. O cristianismo, se universal, se revelação, deve ser o contínuo desdobramento, descoberta incessante do sentido da vida. Revelação é a certificação da vida. Não pode ser mais do que isso; necessita ser tudo isso. [...] O Cristianismo em sua realidade não reconhece nenhuma atitude sectarista ou exclusivista. [...] se for identificado com algum ato especial, eclesiástico ou cerimonial, nega a sua base e o seu destino. A alegação que o Cristianismo faz é que Deus é a verdade, e como verdade Ele é amor e se revela totalmente ao homem, mantendo nada de si mesmo; que o homem é tão um com a verdade assim revelada que nem é tanto revelado à ele quanto nele, ele é sua encarnação; que pela apropriação da verdade, e a identificação com ela, o homem é livre; livre negativamente, livre do pecado, livre positivamente, livre para viver a sua própria vida, livre para expressar a si mesmo, livre para tocar sem permissões ou limitações sobre o instrumento dado a ele – o meio dos desejos e forças naturais. Como revelação, Cristianismo precisa revelar. O único teste através do qual ele pode ser experimentado são os testes de fato – são as suas verdades constantemente certificadas e apropriadas pelo homem? Uma vida leal à verdade traz liberdade?

É óbvio que nas outras religiões não há nenhuma grande inconsistência na declaração de que certos homens são representantes especiais da religião, insistindo que há certas ideias específicas para se manter, certos atos especiais para realizar, como religiosos. Nenhuma outra religião nunca generalizou os seus fundamentos e os seus motivos, apreendendo a universalidade da verdade, e o seu conseqüente poder auto-revelador para todos. Mas no Cristianismo a tentativa de fixar a verdade religiosa uma vez por todas, mantê-la delimitada à certos limites rígidos, dizer que isso e somente isso é Cristianismo, é auto-contraditório. A revelação da verdade necessita continuar contanto que a vida tenha novos significados para desdobrar, novas ações para propor. Uma organização pode ruidosamente proclamar sua lealdade ao Cristianismo e ao Cristo; mas se, em asseverar sua lealdade, assume um certo tipo de tutela da verdade Cristã, uma certa prerrogativa em estabelecer o que é essa verdade, uma certa exclusividade em administrar as condutas religiosas, se, resumindo, a organização tenta pregar uma fixidez em um mundo em mudança e proclamar um monopólio em um mundo comum – tudo isso é um sinal que o Cristianismo real está agora funcionando fora da e além da organização, que a revelação está ocorrendo em canais mais amplos e mais livres.

A organização histórica chamada igreja aprendeu a pouco uma lição desse tipo. Houve um tempo em que a igreja presumiu a peremptoriedade de suas próprias ideias sobre as relações de Deus e o mundo, e as relações da natureza e o homem. Por séculos a igreja visível presumiu que era a guardiã e administradora da verdade nestas questões. Não somente empenhou-se contra o nascimento e crescimento da ciência como falsa, mas rotulou essa ciência como ímpia e anti-cristã, até a ciência quase aprender a chamar-se por esse nome tão impositivamente e continuamente fixado sobre ela. Mas ocorreu então como sempre – a verdade existe não em palavra, mas em poder. Como na parábola dos dois filhos, o que jactou-se de sua prontidão para servir na vinha não foi, enquanto o irmão mais novo que disse que ele não iria, foi à vinha e pela obediência à verdade revelou a verdade mais profunda da unidade da lei, a presença de uma força viva contínua, a unidade vital e conspiradora de todo o mundo. A revelação foi feita no que chamamos de ciência. A revelação não podia ser interrompida por causa da ausência de fé da igreja, ela forçou seu caminho para fora no novo canal.

Novamente, eu repito, revelação deve revelar. Não é simplesmente uma questão da realidade declarada, é também uma questão de compreensão daquele a quem a realidade é declarada. Uma religião hindu, uma religião grega, poderá colocar suas verdades religiosas em mistérios que não foram compreendidos. Uma religião de revelação necessita desvendar e descobrir; necessita levar a sua verdade à consciência do indivíduo. Revelação compromete, em poucas palavras, não somente declarar que a verdade das coisas é tal e tal, compromete dar ao indivíduo órgãos para a verdade, órgãos pelos quais ele poderá apreender, ver e sentir, a verdade.

Fazer vista grossa para este aspecto da revelação é o mesmo que ficar com a palavra mas negar o fato. Já há tempo, os teólogos, assim como os filósofos, tem apontado suas armas em direção ao agnosticismo, a doutrina que Deus, e as verdades fundamentais da vida, estão ocultas ao conhecimento humano. O que é verdade para um deve ser verdade para outros, e se o agnosticismo é falso, falso também é a doutrina que a revelação é o processo no qual um Deus externo declara ao homem certas afirmações fixas sobre Si mesmo e os métodos de Seu obrar. Deus é essencialmente e somente o auto-revelador, e a revelação é completa somente na medida em que os homens passam a realizá-Lo.

Fica aqui a primeira parte do assunto. O Cristianismo é revelação, e revelação significa descoberta efetiva, a certificação atual ou garantia ao homem da verdade de sua vida e da realidade do Universo.
É neste ponto que a significância da democracia aparece. O reino de Deus, como Cristo disse, está entre nós, ou em nosso meio. A revelação é, e pode ser, somente na inteligência. Soa estranho ouvir homens chamarem a si mesmos professores cristãos, e ao mesmo tempo condenar o uso da razão e do pensamento em relação a verdade cristã. Cristianismo como revelação não é/está somente para, mas é/está no pensamento e razão do homem. Além de todos outros meios de se apropriar da verdade, além de todos os outros órgãos de apreensão, está ação própria do homem. O homem interpreta o Universo no qual ele vive em termos de sua própria ação no momento dado. Se Jesus Cristo tivesse feito uma afirmação absoluta, detalhada e explícita sobre todos os fatos da vida,  tal afirmação não teria algum sentido – não teria sido revelação – até que os homens começassem a perceber em suas próprias ações a verdade que ele declarou – até que eles mesmos começassem a vivê-la. Em última análise, a ação própria do homem, o movimento de sua própria vida, é o único órgão que ele tem para receber e apropriar-se da verdade. A ação do homem é encontrada em seus relacionamentos sociais – o modo no qual ele se conecta com seus companheiros. É a organização social do homem, o estado em que ele está expressando a si mesmo, que sempre tem e sempre deverá estabelecer a forma e  “soar o tom” para o entendimento do Cristianismo.

O próprio Jesus ensinou que o indivíduo é livre em sua vida porque o indivíduo é o órgão da Verdade absoluta do Universo. Eu vejo nenhuma razão em acreditar que Jesus quis dizer isso a não ser em seu sentido mais geral; Eu não vejo nenhuma razão para pressupor que ele quis dizer que o indivíduo é livre simplesmente em alguma direção específica ou departamento; Eu não vejo nenhuma razão para pressupor que os seus ensinamentos sobre a acessibilidade da verdade ao homem precisa ser entendido de qualquer modo não-natural ou limitado. Contudo o mundo ao qual essas ideias foram ensinadas não se encontrou livre, e não encontrou o caminho à verdade tão direta e aberta. Escravidão de todos os tipos abundaram; o indivíduo se encontrou escravizado a natureza e aos seus companheiros. Ele encontrou ignorância ao invés de conhecimento; escuridão ao invés de luz. Esses fatos fixaram o método de interpretação para aquele tempo. Era impossível que os ensinamentos de Jesus fossem entendidos em seu sentido direto e natural quando todo mundo existente de ação parecia contradizê-los. Era inevitável que esses ensinamentos devessem ser defletidos e distorcidos pelos seus mediadores de interpretação – as condições existentes de ação.

O significado da democracia como revelação é que ela nos permite acesso a verdades em um sentido natural, cotidiano e prático, o que de outro modo só poderia ser apreendido em um sentido não-natural ou sentimental. Eu pressuponho que a democracia é um fato espiritual e não uma mera peça do maquinário governamental. Se não há nenhum Deus, nenhuma lei, nenhuma verdade no Universo, ou se esse Deus é um Deus ausente, que não está realmente trabalhando, então nenhuma organização social possui qualquer significado espiritual. Se Deus é/está, como Cristo ensinou, na raiz da vida, encarnado no homem, então a democracia possui um significado espiritual que nos convêm não deixar pra trás. Democracia é liberdade. Se a verdade está no fundamento das coisas, liberdade significa dar a verdade uma chance de mostrar a si mesma, uma chance de brotar das profundezas. Democracia, como liberdade, significa afrouxamento dos laços, o desgastar das restrições, a ruptura de barreiras, das paredes do meio, de repartições. Através desse acabar com restrições, qualquer verdade, qualquer realidade que há na vida do homem é liberta para expressar-se. Democracia é, como liberdade, a libertação da verdade. A verdade torna livre, mas tem sido o obrar da historia a libertação da verdade – quebrar as paredes de isolamento e de interesses de classes que a manteve presa e submissa. A ideia de que o homem pode promulgar “lei” na esfera social mais do que na chamada esfera “física” simplesmente mostra com quão pouca seriedade, quão pouca fé, os homens tomaram para si a concepção de Deus encarnado na humanidade. Homem só pode descobrir a lei des-cobrindo-a, revelando-a. Ele a pode des-cobrir somente pela libertação da vida, pela libertação da expressão, para que então a verdade possa aparecer com mais consciência e mais força propulsora.

A unificação espiritual da humanidade, a realização da irmandade dos homens, tudo o que Cristo chamou de Reino de Deus é exatamente a expressão mais abrangente dessa liberdade da verdade. A verdade não está completamente livre quando ela entra na consciência de algum indivíduo, para ele deleitar a si mesmo com ela. Está livre somente quando ela movimenta-se para dentro e através deste indivíduo favorecido aos seus companheiros; quando a verdade que vem à consciência de um, se estende e se distribui a todos para se tornar o Common-wealth, a República, os assuntos públicos. As paredes quebradas pela liberdade que é democracia, são todas as paredes que impedem o movimento completo da verdade. É na comunidade da verdade então estabelecida que a fraternidade, que é democracia, tem o seu ser. A suposição de que os laços que unem os homens juntos, de que as forças que unificam a sociedade, podem ser outras que as próprias leis de Deus, podem ser outras que a extensão do obrar de Deus na vida, é uma parte da mesma descrença prática na presença de Deus no mundo a qual eu já mencionei. Aqui então nós temos democracia! Em seu lado negativo, o rompimento das barreiras que mantém a verdade de encontrar expressão, em seu lado positivo, o assegurar as condições que dão à verdade o seu movimento, a sua completa distribuição ou serviço. Não é nenhum acaso que a crescente organização da democracia coincide com o ascensão da ciência, incluindo o maquinário do telégrafo e locomotiva para distribuir a verdade. Há apenas um fato – o movimento mais completo do homem à sua unidade com seus companheiros através da realização da verdade da vida.

Democracia aparece então como o meio pelo qual a revelação da verdade é conduzida. É na democracia, a comunidade de ideias e interesse através da comunidade de ação, que a encarnação de Deus no homem (homem, ou seja, como órgão da verdade universal) se torna um coisa presente, viva, obtendo seu sentido ordinário e natural. Essa verdade é trazida à vida; sua segregação removida; é feita uma verdade comum promulgada em todos os departamentos de ação, não em uma esfera isolada chamada religião.

Está a verdade isolada prestes a dar boas vindas a sua realização, completude, na verdade comum? Está a revelação parcial pronta para morrer como parcial para que possa viver na integral? Essa é a questão prática que nos confronta. Podemos render – não somente o mal per se – mas o bem adquirido para que possamos assegurar um bem mais abrangente? Devemos dar boas vindas a revelação da verdade agora fluindo na democracia como uma realização mais ampla da verdade formalmente asserida em canais mais ou menos limitados e com significado mais ou menos não-natural? Na medida em que a democracia vem à consciência em si mesma, se torna cônscia de sua própria base e conteúdo espiritual, essa questão nos confrontará mais e mais.

[...]Vai a antiga formulação, herdada dos dias quando a organização da sociedade não era democrática, quando a verdade estava apenas começando a obter sua liberdade e sua unidade através da liberdade, – vai esta formulação lutar e contender contra a revelação mais ampla porque ela vem do que aparenta ser fora de seus próprios muros, ou ela vai dar boas vindas alegremente e lealmente, enquanto uma expressão mais integral de sua própria ideia e propósito?

[...]Pode alguém pedir por um trabalho melhor e mais inspirador? Certamente fundir em um só os motivos sociais e os religiosos, romper as barreiras do Farisaísmo e da auto-afirmação que isola o pensamento religioso e a conduta da vida comum do homem, para realizar o estado como uma Commonwealth da verdade – certamente essa é uma causa digna de se lutar. [...]


[1] Uma comunicação entregue no Sunday Morning Services da Student’s Christian Association, University of Michigan, 27 de Março, 1892. Primeiramente publicado em Religious Thought na University of Michigan (Ann Arbor: Register Publishing Co., Inland Press, 1893, p. 60-69.)