Cristianismo e Democracia[1]
John Dewey
Tradução: Kevin D. S. Leyser
[...] Jesus não tinha nenhum culto ou rito a impor; nenhuma forma
específica de adoração, nenhum ato específico chamado religião [...] Ele
proclamou este mesmo tipo de organização de atos especiais e
instituições como parte das imperfeições da vida. “A hora chegou em que
vocês adoraram ao Pai nem nesta montanha nem em Jerusalém [...] a hora
chegou e agora é quando verdadeiro adoradores adorarão ao Pai em
espírito e em verdade” [Jo 4] – a hora quando a adoração deveria ser
simplesmente a expressão livre e verdadeira do homem em seu agir. Jesus
não tinha nenhuma doutrina especial para impor – nenhum conjunto
especial de verdades rotulado religioso. “Se qualquer homem quiser fazer a vontade
dele, ele conhecerá a respeito da doutrina” [Jo 7.17]. “E conhecereis a
verdade e a verdade vos libertará”[Jo 8.32]. [...] Não havia nenhuma
verdade religiosa que Ele veio ensinar; ao contrário, a sua doutrina era
que a Verdade, não importando como fosse nomeada ou compartilhada pelo
homem, é uma assim como Deus é um; que apreender a verdade e viver por
ela é a religião. Dr. Mulford em sua Republic of God, mantêm
que o Cristianismo não é uma religião, não tendo nenhum culto e nenhum
dogma próprio para marcar-lo fora da ação e da verdade em geral. A
própria universalidade do Cristianismo o impede de ser uma religião. O
Cristianismo, Dr. Mulford sustenta, não é uma religião mas uma
revelação.
A condição da revelação é que ela revela. O cristianismo, se
universal, se revelação, deve ser o contínuo desdobramento, descoberta
incessante do sentido da vida. Revelação é a certificação da vida. Não
pode ser mais do que isso; necessita ser tudo isso. [...] O Cristianismo
em sua realidade não reconhece nenhuma atitude sectarista ou
exclusivista. [...] se for identificado com algum ato especial,
eclesiástico ou cerimonial, nega a sua base e o seu destino. A alegação
que o Cristianismo faz é que Deus é a verdade, e como verdade Ele é amor
e se revela totalmente ao homem, mantendo nada de si mesmo; que o homem
é tão um com a verdade assim revelada que nem é tanto revelado à ele quanto nele,
ele é sua encarnação; que pela apropriação da verdade, e a
identificação com ela, o homem é livre; livre negativamente, livre do
pecado, livre positivamente, livre para viver a sua própria vida, livre
para expressar a si mesmo, livre para tocar sem permissões ou limitações
sobre o instrumento dado a ele – o meio dos desejos e forças naturais.
Como revelação, Cristianismo precisa revelar. O único teste através do
qual ele pode ser experimentado são os testes de fato – são as suas
verdades constantemente certificadas e apropriadas pelo homem? Uma vida
leal à verdade traz liberdade?
É óbvio que nas outras religiões não há nenhuma grande inconsistência
na declaração de que certos homens são representantes especiais da
religião, insistindo que há certas ideias específicas para se manter,
certos atos especiais para realizar, como religiosos. Nenhuma outra
religião nunca generalizou os seus fundamentos e os seus motivos,
apreendendo a universalidade da verdade, e o seu conseqüente poder
auto-revelador para todos. Mas no Cristianismo a tentativa de fixar a
verdade religiosa uma vez por todas, mantê-la delimitada à certos
limites rígidos, dizer que isso e somente isso é Cristianismo, é
auto-contraditório. A revelação da verdade necessita continuar contanto
que a vida tenha novos significados para desdobrar, novas ações para
propor. Uma organização pode ruidosamente proclamar sua lealdade ao
Cristianismo e ao Cristo; mas se, em asseverar sua lealdade, assume um
certo tipo de tutela da verdade Cristã, uma certa prerrogativa em
estabelecer o que é essa verdade, uma certa exclusividade em administrar
as condutas religiosas, se, resumindo, a organização tenta pregar uma
fixidez em um mundo em mudança e proclamar um monopólio em um mundo
comum – tudo isso é um sinal que o Cristianismo real está agora
funcionando fora da e além da organização, que a revelação está
ocorrendo em canais mais amplos e mais livres.
A organização histórica chamada igreja aprendeu a pouco uma lição
desse tipo. Houve um tempo em que a igreja presumiu a peremptoriedade de
suas próprias ideias sobre as relações de Deus e o mundo, e as relações
da natureza e o homem. Por séculos a igreja visível presumiu que era a
guardiã e administradora da verdade nestas questões. Não somente
empenhou-se contra o nascimento e crescimento da ciência como falsa, mas
rotulou essa ciência como ímpia e anti-cristã, até a ciência quase
aprender a chamar-se por esse nome tão impositivamente e continuamente
fixado sobre ela. Mas ocorreu então como sempre – a verdade existe não
em palavra, mas em poder. Como na parábola dos dois filhos, o que
jactou-se de sua prontidão para servir na vinha não foi, enquanto o
irmão mais novo que disse que ele não iria, foi à vinha e pela
obediência à verdade revelou a verdade mais profunda da unidade da lei, a
presença de uma força viva contínua, a unidade vital e conspiradora de
todo o mundo. A revelação foi feita no que chamamos de ciência. A
revelação não podia ser interrompida por causa da ausência de fé da
igreja, ela forçou seu caminho para fora no novo canal.
Novamente, eu repito, revelação deve revelar. Não é simplesmente uma
questão da realidade declarada, é também uma questão de compreensão
daquele a quem a realidade é declarada. Uma religião hindu, uma religião
grega, poderá colocar suas verdades religiosas em mistérios que não
foram compreendidos. Uma religião de revelação necessita desvendar e
descobrir; necessita levar a sua verdade à consciência do indivíduo.
Revelação compromete, em poucas palavras, não somente declarar que a
verdade das coisas é tal e tal, compromete dar ao indivíduo órgãos para a
verdade, órgãos pelos quais ele poderá apreender, ver e sentir, a
verdade.
Fazer vista grossa para este aspecto da revelação é o mesmo que ficar
com a palavra mas negar o fato. Já há tempo, os teólogos, assim como os
filósofos, tem apontado suas armas em direção ao agnosticismo, a
doutrina que Deus, e as verdades fundamentais da vida, estão ocultas ao
conhecimento humano. O que é verdade para um deve ser verdade para
outros, e se o agnosticismo é falso, falso também é a doutrina que a
revelação é o processo no qual um Deus externo declara ao homem certas
afirmações fixas sobre Si mesmo e os métodos de Seu obrar. Deus é
essencialmente e somente o auto-revelador, e a revelação é completa
somente na medida em que os homens passam a realizá-Lo.
Fica aqui a primeira parte do assunto. O Cristianismo é revelação, e
revelação significa descoberta efetiva, a certificação atual ou garantia
ao homem da verdade de sua vida e da realidade do Universo.
É neste ponto que a significância da democracia aparece. O reino de
Deus, como Cristo disse, está entre nós, ou em nosso meio. A revelação
é, e pode ser, somente na inteligência. Soa estranho ouvir homens
chamarem a si mesmos professores cristãos, e ao mesmo tempo condenar o
uso da razão e do pensamento em relação a verdade cristã. Cristianismo
como revelação não é/está somente para, mas é/está no
pensamento e razão do homem. Além de todos outros meios de se apropriar
da verdade, além de todos os outros órgãos de apreensão, está ação
própria do homem. O homem interpreta o Universo no qual ele vive em
termos de sua própria ação no momento dado. Se Jesus Cristo tivesse
feito uma afirmação absoluta, detalhada e explícita sobre todos os fatos
da vida, tal afirmação não teria algum sentido – não teria sido
revelação – até que os homens começassem a perceber em suas próprias
ações a verdade que ele declarou – até que eles mesmos começassem a vivê-la.
Em última análise, a ação própria do homem, o movimento de sua própria
vida, é o único órgão que ele tem para receber e apropriar-se da
verdade. A ação do homem é encontrada em seus relacionamentos sociais – o
modo no qual ele se conecta com seus companheiros. É a organização
social do homem, o estado em que ele está expressando a si mesmo, que
sempre tem e sempre deverá estabelecer a forma e “soar o tom” para o
entendimento do Cristianismo.
O próprio Jesus ensinou que o indivíduo é livre em sua vida porque o
indivíduo é o órgão da Verdade absoluta do Universo. Eu vejo nenhuma
razão em acreditar que Jesus quis dizer isso a não ser em seu sentido
mais geral; Eu não vejo nenhuma razão para pressupor que ele quis dizer
que o indivíduo é livre simplesmente em alguma direção específica ou
departamento; Eu não vejo nenhuma razão para pressupor que os seus
ensinamentos sobre a acessibilidade da verdade ao homem precisa ser
entendido de qualquer modo não-natural ou limitado. Contudo o mundo ao
qual essas ideias foram ensinadas não se encontrou livre, e não
encontrou o caminho à verdade tão direta e aberta. Escravidão de todos
os tipos abundaram; o indivíduo se encontrou escravizado a natureza e
aos seus companheiros. Ele encontrou ignorância ao invés de
conhecimento; escuridão ao invés de luz. Esses fatos fixaram o método de
interpretação para aquele tempo. Era impossível que os ensinamentos de
Jesus fossem entendidos em seu sentido direto e natural quando todo
mundo existente de ação parecia contradizê-los. Era inevitável que esses
ensinamentos devessem ser defletidos e distorcidos pelos seus
mediadores de interpretação – as condições existentes de ação.
O significado da democracia como revelação é que ela nos permite
acesso a verdades em um sentido natural, cotidiano e prático, o que de
outro modo só poderia ser apreendido em um sentido não-natural ou
sentimental. Eu pressuponho que a democracia é um fato espiritual e não
uma mera peça do maquinário governamental. Se não há nenhum Deus,
nenhuma lei, nenhuma verdade no Universo, ou se esse Deus é um Deus
ausente, que não está realmente trabalhando, então nenhuma organização
social possui qualquer significado espiritual. Se Deus é/está, como
Cristo ensinou, na raiz da vida, encarnado no homem, então a democracia
possui um significado espiritual que nos convêm não deixar pra trás.
Democracia é liberdade. Se a verdade está no fundamento das coisas,
liberdade significa dar a verdade uma chance de mostrar a si mesma, uma
chance de brotar das profundezas. Democracia, como liberdade, significa
afrouxamento dos laços, o desgastar das restrições, a ruptura de
barreiras, das paredes do meio, de repartições. Através desse acabar com
restrições, qualquer verdade, qualquer realidade que há na vida do
homem é liberta para expressar-se. Democracia é, como liberdade, a
libertação da verdade. A verdade torna livre, mas tem sido o obrar da
historia a libertação da verdade – quebrar as paredes de isolamento e de
interesses de classes que a manteve presa e submissa. A ideia de que o
homem pode promulgar “lei” na esfera social mais do que na chamada
esfera “física” simplesmente mostra com quão pouca seriedade, quão pouca
fé, os homens tomaram para si a concepção de Deus encarnado na
humanidade. Homem só pode descobrir a lei des-cobrindo-a, revelando-a.
Ele a pode des-cobrir somente pela libertação da vida, pela libertação
da expressão, para que então a verdade possa aparecer com mais
consciência e mais força propulsora.
A unificação espiritual da humanidade, a realização da irmandade dos
homens, tudo o que Cristo chamou de Reino de Deus é exatamente a
expressão mais abrangente dessa liberdade da verdade. A verdade não está
completamente livre quando ela entra na consciência de algum indivíduo,
para ele deleitar a si mesmo com ela. Está livre somente quando ela
movimenta-se para dentro e através deste indivíduo favorecido aos seus
companheiros; quando a verdade que vem à consciência de um, se estende e
se distribui a todos para se tornar o Common-wealth, a
República, os assuntos públicos. As paredes quebradas pela liberdade que
é democracia, são todas as paredes que impedem o movimento completo da
verdade. É na comunidade da verdade então estabelecida que a
fraternidade, que é democracia, tem o seu ser. A suposição de que os
laços que unem os homens juntos, de que as forças que unificam a
sociedade, podem ser outras que as próprias leis de Deus, podem ser
outras que a extensão do obrar de Deus na vida, é uma parte da mesma
descrença prática na presença de Deus no mundo a qual eu já mencionei.
Aqui então nós temos democracia! Em seu lado negativo, o rompimento das
barreiras que mantém a verdade de encontrar expressão, em seu lado
positivo, o assegurar as condições que dão à verdade o seu movimento, a
sua completa distribuição ou serviço. Não é nenhum acaso que a crescente
organização da democracia coincide com o ascensão da ciência, incluindo
o maquinário do telégrafo e locomotiva para distribuir a verdade. Há
apenas um fato – o movimento mais completo do homem à sua unidade com
seus companheiros através da realização da verdade da vida.
Democracia aparece então como o meio pelo qual a revelação da verdade
é conduzida. É na democracia, a comunidade de ideias e interesse
através da comunidade de ação, que a encarnação de Deus no homem (homem,
ou seja, como órgão da verdade universal) se torna um coisa presente,
viva, obtendo seu sentido ordinário e natural. Essa verdade é trazida à
vida; sua segregação removida; é feita uma verdade comum promulgada em
todos os departamentos de ação, não em uma esfera isolada chamada
religião.
Está a verdade isolada prestes a dar boas vindas a sua realização,
completude, na verdade comum? Está a revelação parcial pronta para
morrer como parcial para que possa viver na integral? Essa é a questão
prática que nos confronta. Podemos render – não somente o mal per se –
mas o bem adquirido para que possamos assegurar um bem mais abrangente?
Devemos dar boas vindas a revelação da verdade agora fluindo na
democracia como uma realização mais ampla da verdade formalmente
asserida em canais mais ou menos limitados e com significado mais ou
menos não-natural? Na medida em que a democracia vem à consciência em si
mesma, se torna cônscia de sua própria base e conteúdo espiritual, essa
questão nos confrontará mais e mais.
[...]Vai a antiga formulação, herdada dos dias quando a organização
da sociedade não era democrática, quando a verdade estava apenas
começando a obter sua liberdade e sua unidade através da liberdade, –
vai esta formulação lutar e contender contra a revelação mais ampla
porque ela vem do que aparenta ser fora de seus próprios muros, ou ela
vai dar boas vindas alegremente e lealmente, enquanto uma expressão mais
integral de sua própria ideia e propósito?
[...]Pode alguém pedir por um trabalho melhor e mais inspirador?
Certamente fundir em um só os motivos sociais e os religiosos, romper as
barreiras do Farisaísmo e da auto-afirmação que isola o pensamento
religioso e a conduta da vida comum do homem, para realizar o estado
como uma Commonwealth da verdade – certamente essa é uma causa digna de se lutar. [...]
[1] Uma comunicação entregue no Sunday Morning Services da Student’s Christian Association, University of Michigan, 27 de Março, 1892. Primeiramente publicado em Religious Thought na University of Michigan (Ann Arbor: Register Publishing Co., Inland Press, 1893, p. 60-69.)
Parabéns Kevin, pelo dom que Deus te deu e por você compartilhá-lo conosco...Beijos!!! Samuel e Raquel
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